É frequente assistirmos, na área do direito bancário, na cobrança de dívidas garantidas por hipoteca, quer em processo executivo quer sobretudo em processo de insolvência, à invocação do direito de retenção, como garantia do pagamento preferencial pelo produto da venda do bem decorrente de contrato-promessa de compra e venda, por sobreposição à hipoteca.
A questão já não é nova, mas não deixa de manter actualidade, atendendo aos interesses e valores envolvidos dos créditos reclamados, o que tem permitido que os tribunais superiores se tenham vindo a pronunciar sobre esta questão.
Cumpre antes de mais distinguir o contrato-promessa de compra e venda com eficácia real ou meramente obrigacional, pois tratando-se de um contrato com eficácia real, oponível a terceiros, se já tiver havido tradição, o administrador de insolvência não poderá negar o cumprimento do contrato, nos termos do disposto no artigo 106.º do CIRE.
As questões colocam-se precisamente quanto ao contrato promessa com mera eficácia obrigacional, e às consequências da opção pelo não cumprimento do mesmo por parte do administrador de insolvência.
Pela sua relevância prática propomo-nos analisar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Uniformizador de Jurisprudência n.º 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, de 20-03-2014.
Este Acordão defende a existência do direito de retenção nos termos do estatuído na alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil, em caso de não cumprimento do contrato promessa pelo administrador de insolvência, ainda que este contrato tenha mera eficácia obrigacional, desde que tenha havido traditio e tenha sido sinalizado.
Contudo, vem fazer uma interpretação mais restritiva da disposição supra referida ao determinar que apenas se aplica aos casos em que o promitente-comprador é consumidor.
A tese que vingou neste acórdão perfilha o entendimento que a rácio do diploma de 1986, que introduziu a alínea f) ao artigo 755.º do Código Civil, visa dirimir o conflito de interesses entre credores hipotecários e consumidores, protegendo o consumidor final porque este constituirá a parte mais débil da relação contratual.
Apesar da interpretação supra referida vir resolver muitas situações pendentes nos tribunais de primeira instância, continua ainda pendente a questão subjacente de ainda assim prevalecer sobre a hipoteca um direito cuja publicidade é assegurada perante todos, mediante o respectivo registo e que se contrapõe ao cariz oculto do direito de retenção.
Tal questão assume especial relevo no âmbito do processo de insolvência, onde tem aplicação o disposto no CIRE, legislação especial que prevalece sobre as demais regras gerais e que, para os negócios em curso à data da insolvência, tem disposições especiais previstas nos artigos 102.º e seguintes.
Dessas disposições resulta que, à excepção do disposto no artigo 106.º, no que se refere ao contrato com eficácia real, com tradição, onde o administrador está vinculado ao cumprimento do mesmo, a regra resultante dessas disposições passa basicamente pela suspensão do cumprimento e pela opção dada ao Administrador da Insolvência de optar pela execução do contrato ou pela recusa do cumprimento.
Entendemos que a estas situações se deve aplicar o regime decorrente dos artigos 102.º e n.º 2 do artigo 106.º do CIRE, que remete para o disposto no n.º 5 do artigo 104.º, pelo que deverão ser essas as consequências do incumprimento do contrato-promessa, juntamente com as previstas no n.º 3 do artigo 102.º, e não outras.
Efectivamente, não podemos ignorar que tais disposições constituem direito especial em relação às regras gerais constantes do Código Civil e têm caracter imperativo, tal como determinado no artigo 119.º do CIRE. Pelo exposto, entendemos que apenas seria defensável a aplicação do regime do incumprimento do contrato-promessa, constante do Código Civil, ao processo de insolvência, na medida em que tal não contrariasse as disposições do CIRE, conforme impõe o artigo 17.º desse código.
E verificamos que não é esse o caso porque nenhuma das disposições supra referidas se refere à possibilidade de exigência do sinal em dobro ou à possibilidade do crédito daí resultante beneficiar de garantia especial.
Entendemos, assim, na esteira de várias das declarações de voto do acórdão em análise, acompanhando a declaração de voto do Conselheiro Sebastião Póvoas, que o legislador ao determinar as regras especiais constantes dos artigos 102.º e seguintes do CIRE, conferindo-lhes expressamente carácter imperativo, visou excluir do processo de insolvência o regime do artigo 442.º do Código Civil, bem como a aplicação, em caso de insolvência, da alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil.
Apesar de não ser este o entendimento que obteve vencimento no Acórdão em análise, tendo em conta o carácter não vinculativo e não definitivo do mesmo, sendo susceptível de alteração posterior, consideramos que nada obsta a que se continue a criar condições para que possa haver uma evolução jurisprudencial no sentido ora defendido.
Departamento Derecho Bancario | (Portugal)
Belzuz Advogados SLP
La presente publicación contiene información de carácter general sin que constituya opinión profesional ni asesoría jurídica. © Belzuz Abogados, S.L.P., quedan reservados todos los derechos. Se prohíbe la explotación, reproducción, distribución, comunicación pública y transformación total o parcial, de esta obra, sin autorización escrita de Belzuz Abogados, S.L.P.